14 abril 2020
Secção Cascais - Semana 3#
Um dos aparentes paradoxos destes tempos é que, uma vez decretada a quarentena, tenho andado a fazer mais exercício ao ar livre. Apesar da confusão psicológica da meteorologia (capaz de alternar períodos chuvosos com o mais soalheiro dos dias), a liberdade concedida pelas autoridades à realização de "passeios higiénicos" tem feito muita gente descobrir os encantos da caminhada e do jogging - ou, no caso de criaturas mortalmente sedentárias como eu, uma versão leve e alternada destes dois exercícios. Sem querer parecer um vendedor de kits de relaxamento Zen, creio que passear pelo meu bairro é uma das actividades mais relaxantes que conheço - há sempre um canto, um caminho, uma travessa ou uma rua que não conhecíamos pronta a ser explorada pela primeira vez, mesmo que já vivamos no mesmo sítio há uma década. Descobrir estes espaços (e imaginar as histórias que nelas se poderiam passar) é sempre fascinante; e há, depois, as pequenas mudanças que vamos notando na fisionomia dos quarteirões ao longo dos tempos: casas habitadas que nos lembramos de ter visto ainda em forma de 'esqueleto', uma ou outra nova construção onde antes só existia mato deixado ao abandono, novos negócios em lojas que me habituei a ver vazias (será que vão sobreviver a esta crise?), os rostos de vizinhos cujo nome não consigo sequer adivinhar. Para quem não tiver uma paixão desmesurada pelo exercício físico, fazer estes passeios com um bom podcast a tocar nos auriculares do telemóvel é um bom remédio para tornar a actividade mais agradável - e para exercitar a massa cerebral ao mesmo tempo que a sua congénere muscular apresenta serviço.
Recentemente, num dos percursos que costumo utilizar, encontrei um quadro abandonado ao pé de um caixote do lixo - não posto dentro do contentor (acção que, gostaria de acreditar, deverá ter causado algum pudor ao proprietário da obra), mas descartado ao seu lado, como que oferecido a quem o arrematar primeiro, seja essa pessoa um transeunte que ache o quadro interessante ou o responsável pela recolha do lixo que não tenha problemas em misturar uma peça de arte com caixas de iogurte, cascas de banana a restantes detritos humanos. A pintura em si pode não ser nada de genial, mas a imagem que propiciou pareceu-me uma metáfora adequada para o modo como as artes estão a ser tratadas neste período de quarentena em Portugal: boa para oferecer ou para desertar.
Noutro passeio, em dia menos ameno, uma senhora tentou vender-me um "visor protector" do rosto por seis euros. Nada como uma tragédia para aguçar o engenho dos oportunistas do costume - e esta descarada proposta de negócio não é nada comparada com as grandes negociatas que aí virão.
Em casa, vêem-se filmes e séries a gosto. Apesar de ter saído a notícia de que os governos europeus tinham solicitado às empresas de streaming que reduzissem a resolução dos seus vídeos para que as redes de comunicação não ficassem congestionadas numa altura em que são mais necessárias do que nunca para reportar situações de emergência, a verdade é que só numa ocasião reparei numa queda abrupta da qualidade de imagem, e mesmo aí foi só um soluço que durou apenas umas horas. De resto, o streaming tem sido feito em Full-HD e recomenda-se. Na Netflix, senti que a "Casa de Papel" pode ter tido o seu momento de "jump the shark" nesta quarta temporada, já que o charme das personagens e a construção precisa da narrativa não parecem conseguir disfarçar o acumular de situações cada vez mais absurdas e inverosímeis. É divertido, como sempre foi, mas já não deslumbra como noutros tempos. Na RTPPlay, noto muito positivamente o modo como a plataforma tem vindo a assegurar o streaming gratuito e em alta qualidade das suas produções originais - estamos longe dos tempos em que os episódios das séries eram disponibilizados na plataforma numa espécie de rip SD manhoso captado a partir da transmissão televisiva original. Nestas semanas, vi os 9 capítulos do "Sul" realizados pelo Ivo M. Ferreira e conto seguir para o "Sara" de Marco Martins e para o novíssimo "A Espia". Haja vontade e dinheiro para arriscar em novas e arrojadas séries no período pós-calypso.
Por fim, um filme que vale a pena reter: o discreto e tocante "Leave no Trace"de Debra Granik, disponível para streaming na Netflix com o título "Fora de Radar". Mark Kermode, crítico de cinema inglês e co-autor de um excelente programa de rádio/podcast dedicado à sétima arte ("Kermode & Mayo's Film Review"), considerou-o o melhor filme de 2018 sem qualquer tipo de reservas, e dá para perceber o entusiasmo: trata-se de um forte retrato de uma relação entre um pai e uma filha que se auto-colocam à margem da sociedade. Contar mais seria estragar o prazer da descoberta dos 108 minutos que compõem o filme. Vão por mim - merece plenamente o vosso tempo e atenção.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário