Fazer anos em pleno período de quarentena é uma daquelas experiências que, não sendo o acontecimento mais doloroso do mundo, não se recomenda a ninguém. Mas, perante as adversidades causadas por um vírus impiedoso, não resta grande hipótese que não seja a de aguçar o engenho para contornar (ou, pelo menos, suavizar) a negritude desta insólita situação. Assim sendo, um pequeno bolo de bolacha caçado durante a primeira incursão a um supermercado desde a oficialização da pandemia passa a ser o bolo de aniversário possível. Sem velas reveladoras da idade nem cânticos de “parabéns a você”, o bolo pode não ter a pompa e circunstância de um brigadeiro gigante mas, ao menos, é saboroso - e, nestes dias cinzentos que correm, a pequena alegria de um bolo saboroso é um bálsamo imprescindível para a nossa sanidade mental.
Desde o arranque desta maldita situação em que todos estamos envolvidos, fui três vezes ao supermercado para fazer as compras ditas essenciais. O primeiro embate com as filas de prateleiras quase completamente esvaziadas é desolador, o açambarcamento deixa-nos com uma selecção limitada e insuficiente e a apreensão é visível nos rostos e expressões corporais de todas as pessoas que caminham pelos corredores. Na segunda semana, porém, as novas visitas correram muito melhor: com as raras excepções de alguns itens, as prateleiras já não se encontravam delapidadas e as pessoas, sem perderem o receio e cautela que são completamente naturais numa altura destas, comportavam-se, geralmente, de forma exemplar, seguindo as recomendações de distanciamento social à risca - e, sobretudo, sem cair em pequenas implicâncias e tricas. Há, apesar de tudo, mais civismo do que os cínicos gostariam de admitir.
Entretanto, eu e o meu irmão fizemos uma espécie de passeio inadvertido à beira-mar quando, ao deslocarmo-nos de carro pela Marginal com o objectivo de ir buscar uma pizza à Pizza Hut da Parede, acabámos presos num longo engarrafamento que nos atrasou a chegada em cerca de meia-hora. Razão para a enorme aglomeração de carros: operação STOP com vista a despistar quem estava a sair de casa pelas razões consideradas aceitáveis pelas autoridades das pessoas que achavam que a maior ameaça à saúde pública desde a gripe espanhola do século passado não passa de uma picuinhice. Apanhámos um pequeno raspanete do agente da polícia que nos mandou parar por sermos duas pessoas num carro a ir buscar uma pizza quando uma é suficiente. Porém, lá nos deixou passar e seguimos com a lição aprendida: evitar a Marginal nestes dias de quarentena, mesmo que a vista seja magnífica. Quanto à pizza, estava morna mas tremendamente comestível.
No Twitter, um amigo escreve que os dias começam e acabam num instante, mas demoram a passar - um paradoxo doloroso que tenho sentido na pele. Uma pessoa parece que passa a viver para preparar as refeições do dia, lavar a loiça, ver os noticiários monotemáticos e adormecer. Fala-se na importância da manutenção de rotinas, mas a verdade é que a pandemia impõe as suas próprias. Felizmente, a arte e o entretenimento existem para nos salvar do tédio e da dor causada pela lenta passagem do tempo. Para não cair num name dropping longo e fastidioso, fica aqui uma única e sentida recomendação: um anime absolutamente brilhante dirigido por Masaaki Yuaasa (realizador do maravilhoso “Devilman Crybaby”) que dá pelo nome de “Keep Your Hands Off Eizouken!” e que está disponível para streaming gratuito no Crunchyroll. Trata-se de uma série sobre três miúdas japonesas muito peculiares que formam um clube de animação na sua escola secundária e descobrem, aos poucos, as dificuldades e alegrias que acompanham a criação de uma curta-metragem animada. Um verdadeiro hino à imaginação e ao processo criativo, sem subplots românticos ou os típicos clichês que pululam em boa parte da produção contemporânea de anime, é daqueles títulos que nos fazem ter vontade de derrotar a inércia e começar a criar. Haverá algo mais apropriado para estes estranhos tempos que vivemos?
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